quarta-feira, 21 de setembro de 2011


O senhor da noite
Miguel Sanches Neto


Toca sanfona em praça pública e sempre consegue mais do que precisa para o quarto de pensão e o pê-efe. O dinheiro que sobra ele aplica na Raspinha. Já ganhou duas vezes. Sem saber até hoje, o vendedor bem quieto ficou com o prêmio.

— Roubando cego, hein! - disse um bêbado que percebeu a malandragem.

Os olhos são duas caçapas de mesa de sinuca, lacradas por uma courama murcha.

Em Peabiru, foi sanfoneiro de zona. Trabalhava de noite e cochilava de dia no quarto das mulheres. Os gigolôs nem se incomodavam com a presença de um morcego.

Em Curitiba, continua sua vida noturna sob o sol. Das nove às vinte horas pode ser encontrado no calçadão da Rua XV, nunca no mesmo lugar. Pula de um canto para outro do tabuleiro este que é o senhor da noite.

Sapo é seu fiel empresário. Cuida para que ninguém roube as gorjetas. Vigia a sanfona e o banquinho enquanto Tome sai para o almoço ou para jogar. Olhos vermelhos de bebida, Sapo recebe indiferente o sanduíche de pão com vina e a garrafinha de refri. No final do dia fica com 20% dos lucros, que ele contabiliza errado, roubando o que pode. Com o que consegue indevidamente, à noite se embebeda.

Agora o Tomé vai pro restaurante, tateando o chão com a bengala. Os meninos que catam papel, ao vê-lo, gritam por pura diversão.

— Pega!

— Isso mesmo, vamos pegar o dinheiro do Tomé.

— Está no bolso da calça.

— Aproveita que ninguém tá vendo.

— Agora!

Em pânico, ele fica parado, atrapalhando as pessoas que passam. Encolhe-se todo, as mãos protegendo o bolso, e chora em silêncio, na sua solidão de cego.

As lágrimas escorrem para dentro.

Miguel Sanches Neto é paranaense, natural de Bela Vista do Paraíso, onde nasceu em 1965. Aos quatro anos, ficou órfão de pai e passa a viver em Peabiru, no mesmo estado, onde estudou em colégio agrícola e chegou a trabalhar na agricultura. Mais tarde, formou-se em Letras. É doutor em Teoria Literária (Unicamp – 1998) e professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR). Crítico literário da Gazeta do Povo (PR) e da revista Carta Capital, o autor vem recebendo críticas favoráveis à sua obra, como a recentemente publicada sobre o romance “Um amor anarquista”, lançado em 2005 pela Record e que o consagrou como “o melhor autor da sua geração”, de acordo com artigo do jornalista Mario Sabino, da revista Veja (24/08/2005). Recebeu o Prêmio Nacional Luis Delfino pelo livro “Inscrições a giz” (FCC, 1991) e o Prêmio Cruz e Souza/2002 por “Hóspede secreto” (contos, Record, 2003).

É autor ainda de:

Chove sobre minha infância ( romance, editora Record, 2000);

Você sempre à minha volta (cartas, editora Letras Contemporâneas, 2003);

Abandono (haicais, edição do autor, 2003);

Venho de um país obscuro (poesia, editora Bertrand-Brasil, 2005);

Biblioteca Trevisan (crítica);

Entre dois tempos ( ensaio literário, Unisinos, 1999);

Herdando uma biblioteca (memória, editora Record, 2004);

Amanda vai amamentar (infanto-juvenil, editora Bertrand-Brasil, 2005);

Estatuto de um novo mundo para as crianças (infanto-juvenil, editora Bertrand-Brasil, 2005);

Primeiros contos (contos, editora Arte & Letra, 2008).

O texto acima foi extraído do livro "Primeiros Contos", Editora Arte & Letra – Curitiba (PR), 2008 - pág. 07.

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